WANDERLEY M.D. FERNANDES
WANDERLEY M.D. FERNANDES
08/07/2013
11:46
Médicos de pés descalços

A importação de médicos estrangeiros sob pretexto da escassez deprofissionais brasileiros no interior do país relembra a memorável conferência“Assistência médica e sociedade”, de agosto de 1974, proferida no Hotel Glória,no Rio de Janeiro, sob o patrocínio da Unesco e a presidência do oncologistaamericano Alfred Gelhorn (1914-2008). À época, Gelhorn disse: “Achandoimpossível a melhoria das condições de saúde da população sem uma reformaestrutural socioeconômica, recomendo a implantação no Brasil do sistema dos“médicos de pés descalços”.

Sucesso na China revolucionária de Mao Tsé-Tung (1949-1976), nas áreas ruraisda República Democrática do Congo (1960-1964) e em outras regiões conflagradasda África, recebia apoio da Organização Mundial de Saúde (OMS). Era opressuposto do exercício da tal medicina básica, coincidentemente a mesma atualopinião utilizada pelo governo para a vinda dos médicos estrangeiros, segundo oministro Alexandre Padilha. Trata-se de uma concepção reducionista da sumaimportância assistencial da medicina primária e, principalmente, ignorar asrecentes descobertas a respeito das origens contemporâneas dos males humanos.

Ser é mente; o corpo, mero porta-voz. Não existe doença básica. O indivíduo éum complexo biopsicossocial. Institucionalizar simples organicismo ao ato doatendimento médico é confundir sintoma com doença, é negar a importância daescuta qualificada, da competência em reconhecer o que escapa ao óbvio dahistória clínica. Uma consulta serve a vários propósitos. Uma queixa pode seruma pergunta ou uma resposta.

Bilhões anuais são gastos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em milhões deexames de imagens corporais, sendo que mais de 86% deles têm laudos normais. Éo sobrediagnóstico do cotidiano, quando milhares de pessoas diariamente fazemda sua identidade a doença, o que um bom médico precisa saber reconhecer.

Pesquisas de David Van Heel, da Universidade de Queen Mary, de Londres,publicadas na revista Nature de 22 de maio último, sobre patologias que atérecentemente atribuía-se causas predominantes as heranças genéticas, exemplo asautoimunes — como psoríase, diabetes tipo 1, esclerose múltipla e outras —,atualmente emitem sinais inconfundíveis de suas naturezas também emocional esocioambiental, exatamente como acontece com a maioria das demais.
O conhecimento sensível, de profissionais bem formados, é imprescindível paraos diagnósticos diferenciais e a redução drástica dos custos desnecessários nasaúde pública. Howard Barrows (1928-2011), em seu livro Developing clinicalproblem — Solving skill, de junho de 1991, afirmava que “um médico preparado,após história e exame físico bem realizados, tem chance de chegar à hipótesediagnóstica correta em 90% dos casos”.

Organicismo simplório como parte da solução importada para atender aspopulações interioranas do país apenas revive modelos assistencialistaseleitoreiros. Redes de tevê, internet e todas as outras mídias assemelham àcomplexidade psicossomática dos brasileiros, sejam urbanos, rurais, sertanejosou indígenas. Medicina primária, principalmente em regiões isoladas, é funçãopara médicos experientes, generalistas vividos, não recém-formados, muito menosestrangeiros com limitações até da língua falada. Verdadeiramente interior,independentemente da região ou lugar, é a subjetividade humana.

Quanto à segurança do atendimento prestado, há anos que espaços de atuaçãomédica vêm progressivamente sendo perdidos para enfermeiras que ocupam funçõesassistenciais e na gestão pública; soldados, cabos e sargentos bombeirosmilitares têm substituído centenas de passados empregos e salários de médicoscivis nos atendimentos pré-hospitalares; as chefias de equipes das emergênciasnos hospitais regionais do Distrito Federal, antes cargos de médicos, hoje sãoocupadas por outros profissionais e até por leigos semialfabetizados e, após aaprovação do Projeto de Lei das Drogas nº 7.663/2010, no Senado, os atingidosserão os psiquiatras e afins. Em seus lugares, pastores e obreiros evangélicosno trato com dependentes químicos, nas ditas “comunidades religiosasterapêuticas”.

Então, o que estabelecer como qualidade do atendimento? Em O princípio vida,reflexões do filósofo naturalista Hans Jonas (1903-1993) sintetizam asformulações ardilosas e evasivas da indiferença soberba, do que faz que ignorao certo e o necessário. Médicos de pés descalços, pusilânimes e ideológicos, certamentea população brasileira nem precisa nem merece, com ou sem revalida.
 


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