A política inicial de enfrentamento à pandemia de COVID-19 baseou-se em expansão de leitos. Gerou uma corrida pela compra de aparelhos de ventilação mecânica e a criação de Hospitais de Campanha. Grandes galpões, cheios de equipamentos, foram montados país afora, mas, vazios de pessoas, atestaram o óbvio: quem cuida dos pacientes e salva vidas não é o equipamento, é o profissional de saúde.
Durante os primeiros meses de crise, houve reconhecimento da população quanto à importância desses profissionais e pelo seu esforço com homenagens, orações e aplausos. Desde então, o tempo passou, a opinião pública se cansou e o poder público se aproveitou. O cenário que se mostrava inicialmente favorável a uma recuperação estrutural do SUS, à recomposição de equipes e serviços, à melhoria das condições de trabalho acabou por transformar-se em completa depreciação. Os mesmos trabalhadores da saúde que receberam homenagens assistiram à precarização das suas condições de trabalho.
Sobrecarga Física e Psicológica
As equipes já vinham desfalcadas e a primeira iniciativa devia ter sido recompô-las, mas infelizmente não aconteceu. Os gestores prontamente suspenderam férias e licenças, ampliaram cargas horárias e captaram profissionais menos experientes para colaborar em serviços altamente especializados.
A consequência dessa inconsequência foi o desgaste físico e mental dos profissionais, com aumento do adoecimento, inclusive pela própria COVID-19. A colaboração de trabalhadores inexperientes, ainda que dedicados e bem-intencionados, aumentou a sobrecarga e os riscos para a equipe e os usuários.
Vínculos precários
Depois de mais de um ano de enfrentamento à pandemia, permanecem as contratações por vínculos precários, os contratos temporários. Nenhuma vaga estatutária ou celetista.
Os profissionais especializados, como emergencistas e intensivistas, mostraram-se mais necessários do que nunca. No entanto, devem sair dessa crise tão pouco valorizados quanto antes: não se viu abertura de vagas de emprego público (estatutário ou celetista), não houve incentivo a programas de residência e especialização. Por que um médico recém-formado dedicaria mais anos à sua especialização sem a menor perspectiva de incentivo?
Reforma da Previdência
A reforma previdenciária foi implementada durante maior pandemia da história, de forma impositiva e açodada, sem o correto diálogo democrático e com grande perda de direitos para os servidores dos três níveis de governo. Sua implementação foi especialmente perversa diante da impossibilidade dos trabalhadores da saúde se mobilizarem por conta das limitações impostas pela crise sanitária.
Adicional COVID-19
A Lei Federal 173/2020 instituiu o plano de enfrentamento à pandemia e destinou recursos a estados e municípios. No artigo 5º, parágrafo 1º, essa lei estabelece claramente os recursos destinados a compensação financeira aos profissionais de saúde. Apesar da determinação legal, do aporte de recursos federais e dos pleitos do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais (SINMED-MG) junto ao governo do estado e de diversos municípios, poucos estabeleceram o adicional e, mesmo quando fizeram, ainda coube questionamento sobre os critérios arbitrários que adotaram. Cabe destacar que os trabalhadores da saúde estão mais expostos a contágio e morte pelo SARS-COV2 – levantamento da Associação Médica Brasileira estimou um adoecimento entre médicos cinco vezes maior que a média da população.
Terceirização e Pejotização
Não bastasse sobrecarregar, não bastasse desprestigiar, ainda é possível precarizar. Aparecem as propostas de terceirização de gestão de serviços de saúde pública, com o ingênuo argumento de racionalidade e agilidade. São Organizações Sociais de Saúde (OSS), Consórcios e outros entes do chamado terceiro setor destinados a intermediar a contratação de profissionais e serviços de saúde.
O que chamam de agilidade e flexibilidade (muito desejáveis, aliás) geralmente manifesta-se pura e simplesmente por desapego aos necessários princípios de gestão pública como legalidade e transparência. Já de início, o gestor dá um drible à Lei de Responsabilidade Fiscal, uma vez que os profissionais contratados pelo terceirizado não entram na folha de pagamento, mesmo que o recurso continue a vir da mesma fonte. Além disso, práticas de terceirização, quarteirização etc, prejudicam a fiscalização do uso do dinheiro público. No Rio, das dez Organizações Sociais que atuam no município, oito são investigadas por corrupção; uma lei estadual prevê a extinção do modelo até 2024.
A gestora terceirizada também pode fazer o “trabalho sujo” para que o governante não se exponha. O maior exemplo talvez seja a “pejotização” do trabalho, especialmente dos médicos. A contratação de serviços de saúde de uma empresa terceirizada é absolutamente legal, mas contratar um trabalhador para cumprir escala definida, cumprir horário, submeter-se ao processo de trabalho da instituição, mas fazendo uso de uma Pessoa Jurídica (PJ) para privá-lo de seus direitos trabalhistas e ainda gozar de vantagens fiscais, é ilegal e imoral.
Além de “pejotizar”, não é incomum, especialmente em transições de governo, que serviços médicos deixem de ser pagos pelas terceirizadas. Obviamente o gestor atribui o erro à terceirizada e vice-versa, de forma que os trabalhadores ficam a ver navios, principalmente porque as terceirizadas têm contratos ridiculamente mal-feitos.
Alguns podem, eventualmente, ter tido boas oportunidades durante a pandemia de COVID-19, mas no caso dos médicos e demais profissionais de saúde, passou-se rapidamente do aplauso ao descaso pelo seu trabalho.