JOÃO HÉLIO ROCHA
JOÃO HÉLIO ROCHA
18/08/2014
08:00
Anarquia no ensino médico

Em 22 de julho/2014, o Governo Dilma criou mais 6 faculdades de medicina completando 61 no seu mandato. Agora o Brasil tem 241 escolas médicas, revela o site “www.escolasmedicas.com.br” (a China tem 150; Estados Unidos 141). Quem vai ensinar medicina para esta multidão de alunos? O governo vai importar professores de medicina de Cuba? Quantos hospitais-escola precisarão ser construídos para treinar os futuros médicos? Não se pode ficar abrindo faculdades de medicina por aí como se abrem botequins em cada esquina penalizando os estudantes, inocentes, e a população com assistência sem credibilidade. Falta ao governo uma visão estratégica para o futuro da assistência médica e da medicina porque teremos médicos insuficientemente preparados e nem se conseguirá capacitar novos médicos para ensinar medicina às gerações futuras. É previsível a decadência da medicina e um grande atraso no aprendizado da ciência médica nas próximas décadas. Médicos recém-formados, naturalmente sem adestramento técnico após a graduação, não terão coragem de ir para o interior solitários onde terão que enfrentar situações diversificadas de patologias múltiplas sem contar com apoio. Vão preferir ficar nas grandes cidades onde o anonimato os protegerá, mesmo mal remunerados, até conseguir eficiência profissional. No Brasil, logo depois de receber o diploma, os médicos podem automaticamente exercer a profissão.Sem treinamento, assumem plantão em prontos-socorros onde trabalham muitas vezes isolados como único médico no dia e se veem à frente de casos complicados que exigem um certo grau de experiência para bem conduzi-los. Em vez de criar atabalhoadamente numerosas escolas médicas sem estrutura adequada visando apenas uma quantidade maior de formandos e deixando em segundo plano a qualidade do ensino, o governo precisa se espelhar no exemplo dos Estados Unidos quando resolveram uma situação absolutamente caótica na formação de médicos. Em 1906, há mais de cem anos, os Estados Unidos, então com 87 milhões de habitantes e o Canadá (um domínio britânico até 1931 quando se tornou um país independente) com população de 6 milhões, tinham 160 faculdades de medicina com ensino precário, mal equipadas e com deficiências qualitativas e quantitativas no corpo docente (notem a similaridade com a situação atual em nosso país).Houve uma tomada de posição para mudar radicalmente aquela situação. A Fundação Carnegie, presidida pelo professor Henry S. Pritchett, contratou o educador Abraham Flexner com a incumbência de fazer um estudo sobre as escolas médicas. Flexner ponderou que não era médico. Pritchett retrucou: “É exatamente o que eu preciso. Eu penso que estas escolas profissionais devam ser estudadas não sob o ponto de vista do praticante da profissão, mas do ponto de vista do educador”. Durante quatro anos, de 1906 a 1910, Flexner visitou cada uma das 160 escolas (todas, sem exceção) e elaborou minucioso relatório. Quase uma centena de escolas médicas — precisamente 94 — foram fechadas no período de 1910 a 1933. Para as 66 remanescentes foram estipuladas normas de funcionamento com obrigatoriedade de serem vinculadas a uma universidade ou a hospitais de ensino previamente qualificados. Foi também estabelecido um processo de aferição da capacidade técnica do aluno após a graduação, conhecido pela designação “State Board”. A licença para a prática médica passou a ser concedida somente após a aprovação do médico no exame de suficiência (assim procede a OAB — Ordem dos Advogados do Brasil — que só confere o título de Advogado ao bacharel em Direito que for aprovado no exame de suficiência. Se não for aprovado, o bacharel não pode exercer a profissão). Os Estados Unidos e Canadá demoraram quatro anos para fazer um diagnóstico de situação. Consumiram vinte e três anos (1910 a 1933) para cumprir as metas estabelecidas. Foi operação difícil, delicada e de longa duração. No caso brasileiro todas as deficiências no ensino médico já são conhecidas, mas não se pode fazer uma generalização tão ampla porque muitas escolas médicas são de bom padrão.Os norte-americanos agiram com coragem, decisão política, firmeza e continuidade e conseguiram transformar o ensino médico num modelo de reconhecida excelência. No livro “Fortalecimento do SUS com a participação popular", de nossa autoria” (disponível na internet através do e-mail joaoheliorocha@gmail.com) —, no qual trazemos a público uma judiciosa proposta que pode contribuir decisivamente para acabar com o caos na Saúde — aprofundamos a análise da anarquia no ensino médico, resumida neste artigo. Nós, os médicos, não podemos ficar indiferentes a este processo de desconstrução da medicina que pode levar a assistência médica a um nivelamento por baixo.


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